Associativismo popular<br>– um escandaloso silenciamento
Mais de 30 mil colectividades de cultura, recreio e desporto, envolvendo cerca de 450 mil dirigentes voluntários e benévolos e mobilizando em todo o país milhões de associados e activistas – a que há que acrescentar milhares de associações diversas, civicamente empenhadas na defesa de interesses específicos das populações: eis, em breve síntese, o que é o movimento associativo popular, uma realidade de significado social de grande relevância, cuja dimensão impressiona, mas que é escandalosamente silenciada pelos media de expansão nacional.
Com uma história secular, esta forma de associativismo caracteriza-se por uma estreita ligação às pessoas, funcionando muitas vezes como o principal ou mesmo o único pólo impulsionador das dinâmicas sociais a nível de bairro ou de localidade. Conta, em maior ou menor escala, com a colaboração e apoio das juntas de freguesia e câmaras municipais, o que facilita o desenvolvimento de certo tipo de acções, se bem que a sua principal fonte de receita tenha origem não nos apoios do Estado, através das autarquias ou de qualquer outra forma, mas sim em actividades resultantes da iniciativa própria.
Novas dinâmicas populares
O associativismo deu os seus primeiros passos no séc. XVIII, com as bandas de música, a que no século seguinte se juntaram as associações mutualistas, desenvolvendo-se e progredindo sob o ideário da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – e das condições sociológicas, urbanísticas e outras criadas pela Revolução Industrial. Sobreviveram à hostilidade do fascismo, constituindo até em muitos casos importantes focos de resistência.
As profundas transformações proporcionadas pelo 25 de Abril levaram não só ao aumento do número das associações, que hoje são praticamente o dobro das de então, mas também impulsionaram o alargamento do seu campo de intervenção – em muitos casos, verdade se diga, graças à «ajuda», nos últimos 38 anos, das políticas antipopulares praticadas pelos sucessivos governos…
Com a progressiva implantação do poder local, o aumento da participação popular na vida democrática e o advento de novas dinâmicas sociais, surgiram inúmeras iniciativas, grupos dinamizadores, comissões, movimentos, alguns de existência efémera, outros que permaneceram informais, outros ainda que optaram por formalizar a sua existência enquanto colectividades ou associações. Umas vezes juntando dezenas, outras vezes centenas ou milhares de pessoas, mobilizadas em torno da defesa dos mais variados interesses – de utentes ou de pais, de tradições locais ou de pessoas idosas, do ambiente ou do património histórico, de moradores ou de ensino para seniores, de acções de solidariedade ou de consciencialização cívica, de promoção cultural ou desportiva, dos direitos dos imigrantes, etc.
Na sua transversalidade, riqueza e dimensão global, porém, o movimento associativo está ausente dos grandes media. Pela sua grande audiência e impacto a TV merece especial referência. Detenhamo-nos num exemplo, não sem antes sublinhar as especiais responsabilidades que cabem ao serviço público de rádio e televisão, e até que ponto, neste caso como noutros, a RTP está longe de as cumprir.
Todos os canais generalistas transmitem em directo programas ditos de entretenimento em vários pontos do País, mas orientados segundo critérios comerciais e à margem das dinâmicas populares. São programas produzidos de fora para dentro, segundo formatos estereotipados, e não o resultado de um trabalho destinado a mostrar e divulgar para fora o que verdadeiramente é a realidade da região. Não será por acaso que, como as imagens costumam mostrar, tais iniciativas estão despidas de público e falhas de entusiasmo: descontextualizadas das realidades locais, falta-lhes a espontaneidade, a adesão, a alegria e principalmente a riqueza e a autenticidade que o contributo e a participação das colectividades e do movimento associativo certamente lhes dariam.
A vertente musical assenta na contratação de intérpretes que – não estando aqui em causa o seu direito ao trabalho nem a opção comercial que adoptaram – nenhuma ligação têm com as particularidades musicais e o enquadramento popular local, o que leva a que a divulgação e a valorização do que é genuíno seja menorizado ou mesmo esquecido, e substituído pelo recurso fácil aos duvidosos produtos de uma «industria cultural» que subvaloriza e pode mesmo contaminar o que é próprio de cada região.
Natureza de classe
Sublinhe-se que a realidade associativa se caracteriza por uma notável capacidade de resposta aos novos desafios da vida actual. As colectividades já não podem hoje ser identificadas exclusivamente com as velhas sociedades filarmónicas do passado – se bem que precisamente a música, incluindo sob a forma das tradicionais bandas, seja uma das actividades mais atractivas para muitos dos milhares de jovens por esse País fora ligados ao associativismo popular…
Souberam, na grande maioria dos casos, adaptar-se aos novos tempos, mas mantendo valores e características que desde sempre as definiram e identificaram – o espírito colectivo, a solidariedade, a participação, a democracia interna, a autonomia, a cooperação, o voluntariado, o trabalho benévolo. E mantendo também, hoje como ontem, a sua natureza de classe: 89 por cento dos seus dirigentes são trabalhadores no activo e por conta de outrem.
Tem razão Augusto Flor, presidente da Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto, quando afirma: «O Associativismo, elevado aos seus padrões actuais e grau de organização e estruturação interna, deve ser considerado como movimento social. As colectividades, pela sua diversidade e disseminação pelo território, confirmam que se trata da maior rede social existente em Portugal».1
Não têm razão – ou lá têm as suas razões… – os media dominantes ao estenderem um intolerável manto de silêncio sobre esta tão rica «rede social», emanação genuína de uma dinâmica popular verdadeiramente ao serviço do povo e do País. Não têm razão, mas ao menos mostram assim, claramente, a verdadeira natureza e interesses das suas opções editoriais.
1 Citação de um texto publicado na revista Aldraba, lançada em Novembro último, do qual retirámos os números acima referidos.